segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Falece o ator e diretor Anselmo Duarte

Cinema – Aos 89 anos, morre Anselmo Duarte, ator de “O Caso dos Irmãos Naves

Anselmo faz o truculento militar que comanda a tortura aos suspeitos, tornados culpados antes do julgamento.

Luiz Zanin Oricchio




Homem de vários instrumentos, Anselmo Duarte passa à história como o único brasileiro até agora a vencer o mais badalado festival de cinema do mundo, o de Cannes. Em 1962, já brigado com o então dominante Cinema Novo, Anselmo recebeu a Palma de Ouro por O Pagador de Promessas, adaptado da peça de Dias Gomes. Para chegar ao prêmio, derrotou candidatos temíveis, entre os quais O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, O Processo de Joana D"Arc, de Robert Bresson, e O Eclipse, de Michelangelo Antonioni. Desde então se discute no Brasil a justiça dessa premiação, atribuída por um júri que tinha François Truffaut entre seus integrantes. Seja como for, uma proeza e tanto, Anselmo foi recebido no Brasil como se tivesse vencido uma Copa do Mundo, o que não estava longe da realidade. Mas não foi a única façanha de alguém que, nascido em Salto, no interior paulista em 1920, virou ator de sucesso no Rio de Janeiro. É tido, inclusive, como o maior galã do cinema brasileiro, no tempo em que se queria construir uma indústria cinematográfica e precisava-se de um star system similar ao norte-americano. Quer dizer, um conjunto de atores e atrizes famosos, belos, talentosos e bem pagos, que entravam e saíam de cena, de um filme a outro. Anselmo fez sua estreia no cinema com um pequeno papel em Inconfidência Mineira, da diretora Carmen Santos. Depois mudou-se para a Cinédia, companhia de Adhemar Gonzaga, onde fez Pinguinho de Gente, de Gilda de Abreu. Na Atlântida, a famosa fábrica de chanchadas, fez Terra Violenta ,de Eddie Bernoudy, e Caçula do Barulho, de Riccardo Freda. Dirigido por Watson Machado, estrela Carnaval de Fogo, onde contracena com Eliana Macedo. Vai enfileirando sucesso atrás de sucesso - A Sombra da Outra, Aviso aos Navegantes e Maior que o Ódio. Mas no começo dos anos 50, o eixo da indústria de cinema deslocou-se para São Paulo e Anselmo voltou ao seu Estado natal para trabalhar na Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Estreou, já como astro absoluto, em Tico-Tico no Fubá, cinebiografia do compositor dirigida pelo italiano Adolfo Celi. No mesmo estúdio, trabalhou, como galã, em filmes como Apassionata, de Fernando de Barros, Veneno, de Gianni Pons, e Sinhá Moça, de Tom Payne e Oswaldo Sampaio. Galã, sim, mas talvez seu maior papel seja o de vilão em um filme muito duro e influente de Luís Sérgio Person, O Caso dos Irmãos Naves (1967), sobre um erro judiciário ocorrido em Araguari (MG). Nele, Anselmo faz o truculento militar que comanda a tortura aos suspeitos, tornados culpados antes do julgamento.



O Caso dos Irmãos Naves, filme de Luiz Sérgio Person que relata a história de dois irmãos injustamente acusados, violentados e encarcerados por mais de oito anos pelo governo Vargas. Em Araguari, cidade do interior de Minas, no final de 1937. A quebra da bolsa norte-americana ecoava nas plantações e nos estoques de café, o fascismo ganhava força e influenciava diretamente a Polaca, nossa quarta constituição. O filme se apóia nesses fatos para relatar, com uma secura quase documental, os trâmites judiciários e políticos que regeram o caso. De ritmo ágil, ancorado pelos diálogos concisos do roteiro escrito por Person em parceria com Jean-Claude Bernadet, existe no filme um movimento pendular que oscila entre o cinema policial, o drama familiar e o filme de tribunal, onde o jogo de moralidade e as relações de poder aproximam-no de uma realidade pretendida e explorada com uma agressividade que acaba por impedir sua classificação dentro de qualquer um dos três gêneros.


Se já havia demonstrado um senso estético vigoroso e cerebral em São Paulo S/A, com planos estudados em minúcia e um raciocínio de espaço que privilegia a relação (nem sempre harmoniosa) entre homem e ambiente, Person usa movimentos discretos de travelling e zoom neste filme como que para suavizar a tensão do texto, criando, a partir dessas flexibilizações de plano, espaços de respiração, de atenuação. O uso de profundidade é explorado em diversos momentos, como nas sequências da delegacia, onde um quadro de Vargas exposto na parede ao fundo é fotografado de modo a ressaltar sua patrulha da ação, uma espécie de controle absoluto de tudo que ali se passa. São toques de quem sabe o que faz e assume os riscos dessa postura. É bom lembrar que O Caso dos Irmãos Naves foi lançado em 1967, durante os primeiros anos da nossa segunda ditadura e, até onde sei, não sofreu nenhum tipo de represália por parte dos censores. Não quiseram se envolver novamente naquele que é considerado o maior erro do judiciário brasileiro.


Duas sequências são emblemáticas: as de tortura no campo, onde a câmera treme nervosamente a fim de ressaltar a violência que cai sobre os dois irmãos, com a luz sendo filtrada pelos galhos das árvores criando uma sensação cruel de desconforto e paradoxo (como um dia iluminado e bucólico permite tal atrocidade?); e uma no tribunal, essa das fotos aí em cima, onde os irmãos confessam para o júri que são inocentes, e que apanharam e foram torturados pela polícia local para dizer a verdade, posicionados de frente para a câmera, no meio da tela, com os habitantes da cidade preenchendo o campo ao fundo, fora de foco, indiscretamente passivos. De arrepiar.

Person elevou o cinema brasileiro às maiores potências da criação artística em sua curta carreira. Os dois filmes citados aqui são provas incontestes de sua capacidade de filtrar uma realidade e conciliar questões problemáticas inerentes à sua condição com um controle técnico que poucos conseguiram alcançar. Não é todo dia que se encontram filmes desse tamanho no cinema brasileiro. Grandes, imensos. Maiores do que qualquer coisa que se possa escrever sobre eles.

O Caso dos Irmãos Naves (Luiz Sérgio Person, 1967)


Resenha do livro




O Caso dos Irmãos Naves
Considerado o maior erro judiciário do Brasil. Aconteceu na cidade mineira de Araguari, em 1937. Os irmãos Naves (Sebastião, de 32 anos de idade, e Joaquim, contando 25), eram simplórios trabalhadores que compravam e vendiam cereais e outros bens de consumo.




Joaquim Naves era sócio de Benedito Caetano. Este comprara, com auxílio material de seu pai, grande quantidade de arroz, trazendo-o para Araguari, onde, preocupado com a crescente queda dos preços, vende o carregamento por expressiva quantia.



Na madrugada de 29 de novembro de 1937, Benedito desaparece de Araguari, levando consigo o dinheiro da venda do arroz. Os irmãos Naves, constatando o desaparecimento, e sabedores de que Benedito portava grande importância em dinheiro, comunicam o fato à Polícia, que imediatamente inicia as investigações.



O caso é adrede atribuído ao Delegado de Polícia Francisco Vieira dos Santos, personagem sinistro e marcado para ser o principal causador do mais vergonhoso e conhecido erro judiciário da história brasileira. Militar determinado e austero (Tenente), o Delegado inicia as investigações e não demora a formular a sua convicção de que os irmãos Naves seriam os responsáveis pela morte de Benedito.


A partir de então inicia-se uma trágica, prolongada e repugnante trajetória na vida de Sebastião e Joaquim Naves, e de seus familiares.


Submetidos a torturas as mais cruéis possíveis, alojados de modo abjeto e sórdido na cela da Delegacia, privados de alimentação e visitas, os irmãos Naves resistiram até o esgotamento de suas forças físicas e morais. Primeiro Joaquim, depois Sebastião.



A perversidade do Tenente Francisco não se limitou aos indiciados. Também as esposas e até mesmo a genitora deles foram covardemente torturadas, inclusive com ameaças de estupro, caso não concordassem em acusar os maridos e filhos.


A defesa dos irmãos Naves foi exercida com coragem e perseverança pelo advogado João Alamy Filho, que jamais desistiu de provar a inocência de seus clientes, ingressando com habeas corpus, recursos e as mais variadas petições, na busca de demonstrar às autoridades responsáveis pelo processo o terrível equívoco que estava sendo cometido.



Iniciado o processo, ainda sob as constantes e ignominiosas ameaças do Tenente Francisco, os irmãos Naves são pronunciados para serem levados ao Tribunal do Júri, sob a acusação de serem autores do latrocínio de Benedito Caetano, ao passo que a mãe dos irmãos, D. Ana Rosa Naves, é impronunciada.



Na sessão de julgamento, a verdade começa a surgir, com a retratação das confissões extorquidas na fase policial, e, principalmente, com o depoimento de outros presos que testemunharam as seguidas e infindáveis sevícias sofridas pelos acusados na Delegacia de Polícia.


Dos sete jurados, seis votam pela absolvição dos irmãos Naves.


A promotoria, inconformada, recorre ao Tribunal de Justiça, que anula o julgamento, por considerar nula a quesitação.


Realizado novo julgamento, confirma-se o placar anterior: 6 X 1. Tudo indica que os irmãos Naves seriam finalmente libertados da triste desdita iniciada meses antes. Ledo engano: o Tribunal de Justiça resolve alterar o veredito (o que era então possível, mercê da ausência de soberania do Júri no regime ditatorial da Constituição de 1937), condenando os irmãos Naves a cumprirem 25 anos e 6 meses de reclusão (depois reduzidos, na primeira revisão criminal, para 16 anos).


Após cumprirem 8 anos e 3 meses de pena, os irmãos Sebastião e Joaquim, ante comportamento prisional exemplar, obtêm livramento condicional, em agosto de 1946.


Joaquim Naves falece, como indigente, após longa e penosa doença, em 28 de agosto de 1948, em um asilo de Araguari. Antes dele, em maio do mesmo ano, morria em Belo Horizonte seu maior algoz, o tenente Francisco Vieira dos Santos.


De 1948 em diante, o sobrevivente Sebastião Naves inicia a busca pela prova de sua inocência. Era preciso encontrar o rastro de Benedito, o que vem a ocorrer, por sorte do destino, em julho de 1952, quando Benedito, após longo exílio em terras longínquas, retorna à casa dos pais em Nova Ponte, sendo reconhecido por um conhecido, primo de Sebastião Naves.


Avisado, Sebastião apressa-se em dirigir-se a Nova Ponte, acompanhado de policiais, vindo a encontrar o "morto" Benedito, que, assustado, jura não ter tido qualquer notícia do que ocorrera após a madrugada em que desapareceu de Araguari. Coincidentemente, dias após sua efêmera prisão e o citado juramento, toda a família de Benedito morre tragicamente, na queda do avião que os transportava a Araguari, onde prestariam esclarecimentos sobre o desaparecimento daquele.


O caso passou a ser nacionalmente conhecido. A imprensa o divulgou com o merecido destaque. A mesma população que, influenciada pela autoridade do delegado, inicialmente aceitava como certa a culpa dos irmãos Naves, revoltava-se com o ocorrido, tentando, inclusive, linchar o desaparecido Benedito.


Em nova revisão criminal, os irmãos Naves foram finalmente inocentados, em 1953.


Como etapa final e ainda custosa e demorada, iniciou-se processo de indenização civil pelo erro judiciário.


Em 1956 foi prolatada a sentença, que mereceu recursos pelo Estado, até que, em 1960, vinte e dois anos após o início dos suplícios, o Supremo Tribunal Federal conferiu a Sebastião Naves e aos herdeiros de Joaquim Naves o direito à indenização.


Trechos do Livro


No livro "O CASO DOS IRMÃOS NAVES, UM ERRO JUDICIÁRIO" ( Ed. Del Rey, 3ª ed., Belo Horizonte, 1993), o advogado dos irmãos Naves, João Alamy Filho, dá a sua interpretação das condições que tornaram possível esse tremendo erro: estávamos sob nova ditadura. Não havia garantias legais. Subvertia-se a ordem democrática, extinto o Legislativo, o Poder Executivo sobrepunha-se à lei e ao Judiciário. Saía-se de uma breve revolução. Forçava-se punição criminal comum como substrato da punição criminal política. A pessoa humana, o cidadão, era relegados a um plano inferior, secundário. Interessava-se apenas pelo Estado. A subversão da ordem influenciava a subversão do Direito, e a falta de soberania do Tribunal Popular. Naqueles tempos o Tribunal de Justiça podia reformar o veredito do Júri, o que não acontece mais hoje.




Segue, para ilustrar o sofrimento por que passaram os irmãos Naves, um trecho do livro de onde se extraíram as informações do texto supra, quando são descritas as torturas físicas e morais impingidas a Sebastião e Joaquim, pelo Delegado de Araguari, tenente Francisco Vieira dos Santos:





"Estamos a 12 de janeiro. Dia terrível para os irmãos Naves. O depoimento de Malta tinha sido tomado a 7. Nos cinco dias subseqüentes, o tenente era ferro em brasa. Diligências aqui, lá, acolá. Dia a dia, levava os presos pro mato. Longe. Onde ninguém visse. Nos ermos cerradões das chapadas de criar emas. Batia. Despia. Amarrava às árvores. Cabeça pra baixo, pés para cima. Braços abertos. Pernas abertas. Untados de mel. De melaço. Insetos. Formigas. Maribondos. Mosquitos. Abelhas.

O sol tinia de quente. Árvore rala, sem sombra. Esperava. De noite cadeia. Amarrados. Amordaçados. Água? Só nos corpos nus.

Frio. Dolorido. Pra danar. Pra doer. Pra dar mais sede. Pra desesperar. Noutro dia: vai, vem, retornam. O mesmo. Noutra noite: assim. Eles, nada. Duros. Nunca viu gente assim. Nunca teve de ser tão cruel. Tão mau. Tão violento. Nunca teve tanto trabalho para inventar suplícios. E, nada. Dia. Noite. Noites. Dias. Assim, assim. Um dia: 12, vão lá, à beira do rio Araguari, descem a serra.


Eles vão juntos. Depois, separados. Escondidos, um do outro. Amarrados nas árvores. Como feras. Como touros no sangradoiro. Pensam que é o fim. Não agüentam mais. Inchados. Doloridos. Dormentes. Esperam. Morre? Não morre? O tenente estava satisfeito. Tinha um plano. Perdera a noite. Mas valia, valeu. Conta pros dois, antes de separá-los, de amarrá-los longe, invisível um ao outro. Vocês vão morrer agora. Vamos matá-los. Não tem mesmo remédio. Não contam. Não confessam. Morrem. Morrerão. Separa-os. É a vez do Bastião. Tiros perto dos ouvidos, por trás. Gritos. Encenação. Ele resiste. Largam-no. Voltam para o Joaquim: Matamos seu irmão. Agora é a sua vez. Vai morrer. Joaquim era mais fraco. Aniquilado. Descora mais ainda. Não tem mais sangue. Verde. Espera. Tem piedade! Não me mate, seu tenente. Não tem jeito. Você não conta: morre. Bastião já se foi. Você vai também. Irá com ele. Só se contar. Confessa, bandido! Confessa, bandido! Confessa! Não quer mesmo? Então, vamos acabar com essa droga. Podem atirar. Atenção: Preparar! Fogo! Tiros. Joaquim sente o sangue correr perna abaixo. Não sabe onde o ferimento. Pensa que vai morrer. O delegado: Andem com isso, acabem com ele. Por piedade, seu tenente! Não me mate! Eu faço o que o senhor quiser! Pode escrever. Assino tudo, não me mate! Não agüento mais. Joaquim perde os sentidos. É levado secretamente aonde possa ser curado do ferimento. Mantém-se ausente. Feito o curativo. Não pode contar a ninguém. Caiu; machucou-se. Só. Tem de repetir tudo na Delegacia. Direitinho. Cara boa. Se não fizer, não terá mesmo outro jeito. Você é que sabe, Joaquim. Só se quiser morrer. Joaquim não mais vê Sebastião. Acha que está morto. Apavorado, procura controle. Quando está em ordem, levam-no à delegacia. Vai depor. Segunda. Terceira vez. Desta vez é confissão. Perfeita. Minuciosa. Bem ensaiada. Decorada como discurso de menino em grupo escolar..." (p. 58).



Filme


O Caso dos Irmãos Naves


A reconstituição de um caso real, ocorrido no Estado Novo em 1937, na cidade de Araguari (MG). Tudo começa quando um homem foge levando o dinheiro de uma safra de arroz. Os irmãos Naves (Raul Cortez e Juca de Oliveira), sócios do fugitivo, denunciam o caso à polícia. De acusadores passam, no entanto, a réus, por obra e graça do tenente de polícia (Anselmo Duarte), que dirige a investigação. Presos e torturados, os Naves são obrigados a confessarem o crime que não cometeram.



Ficha Técnica

Título Original: O Caso dos Irmãos Naves

Gênero: Drama

Duração: 92 min.


Lançamento (Brasil): 1967

Distribuição: MC Filmes

Direção: Luís Sérgio Person

Assistente de direção: Sebastião de Souza


Roteiro: Jean-Claude Bernardet e Luís Sérgio Person

Produção: Mário Civelli, Glauco Mirko Laurelli, Luís Sérgio Person, Lauper Filmes e MC Filmes

Música: Cláudio Petráglia

Fotografia: Oswaldo De Oliveira

Direção de arte: Luís Sérgio Person

e Sebastiao de Souza

Figurino: Luís Sérgio Person

e Sebastiao de Souza

Edição: Glauco Mirko Laurelli

Elenco


Anselmo Duarte (tenente de polícia)

Raul Cortez

Juca de Oliveira

Sérgio Hingst (juiz)


John Herbert

Lélia Abramo

Cacilda Lanuza

Julia Miranda

Hiltrud Holz


João Quincas

Milton Lima Filho

Sebastião Campos

Clóvis de Oliveira

Abel Neto

José Veloso

Eberson Moraes

Atônio Romualdo

e atores não profissionais da cidade de Araguari



Premiações

- Em 1968 O Caso dos Irmãos Naves é considerado o melhor filme do ano, e em 1972 faz grande sucesso em Nova Iorque, impressionando a crítica local.

Curiosidades

- Título em inglês: Case of the Naves Brothers.

- Livre adaptação do Romance de João Alamy Filho. Baseado em história verídica o filme relata o drama dos irmãos dos irmãos Naves.


 
 
 
 
“Os chatos, ciumentos invejosos tentaram condenar o cineasta Anselmo ao ostracismo”




- Os motivos e quem foi aquela “turminha chata” que tomava whisky 30 anos, à sombra, a beira-da-piscina e falando de soluções sobre o Brasil.





Anselmo, o astro vítima do star system

SÁB, 07/11/09- POR LUÍS ANTÔNIO GIRON – BLOG MENTE ABERTA

HTTP://COLUNAS.EPOCA.GLOBO.COM/MENTEABERTA/2009/11/07/ANSELMO-O-ASTRO-VITIMA-DO-STAR-SYSTEM/


Anselmo Duarte é até hoje considerado o mais importante cineasta do Brasil. Sua história como galã absoluto da Vera Cruz e sua trajetória como diretor o tornaram insuperável. Ele foi o primeiro (e até hoje único) diretor brasileiro a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962, pelo filme O pagador de promessas. Além disso, ele conquistava todas as mulheres e era um galã. Sua carreira foi literalmente invejável. Foi tanta inveja em cima dele, que ele foi banido da arte para a qual nasceu, o cinema. Tornou-se um folclore. E agora o perdemos sem ter consciência de sua enorme importância para o cinema nacional.


O ator e diretor talvez parecesse um chato, porque sempre estava reivindicando para si próprio a coroa do cinema brasileiro. Ele de fato sempre a mereceu. Mas a turma “jovem” do Cinema Novo, por pura inveja, tratou de desqualificá-lo, de tachá-lo de popular, de pessoa sem formação. Como Anselmo contou em uma biografia lançada nos anos 90 (recomendo a leitura, porque traz saborosos detalhes de bastidores), ele de fato vinha do cinema primitivo, não obteve títulos universitários como os moços do Cinema Novo, nem era metido a crítico de cinema, como Glauber Rocha, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor e a turminha toda. Era um sujeito simples, direto nas suas ideias e nas sua visão de cinema. E como os cinema-novistas dominavam o jornalismo cultural, ele foi banido, desprezado, espezinhado.


Entrevistei algumas vezes o Anselmo. Em Época, publicamos uma entrevista seis anos atrás com o cineasta , e o entrevistador foi Federico Mengozzi, querido colega que morreu em 2007. Vale apena ler a entrevista. Anselmo disse a Mengozzi: “Eu era considerado galã. Isso me incomodava. Era pejorativo. O meu azar foi ser galã. Eu era tímido. Eu nunca desejei ser ator. Queria ser diretor de filmes. Então eu me definiria, sem soberba, com honestidadem e coragem, depois de 55 anos de cinema, como um realizador de filme. Aqui ou em qualquer parte do mundo. Essa é minha profissão. Só isso.”


Anselmo era um sujeito imponente e jamais perdeu a majestade de galã. Falava com grande orgulho de seu passado, mas sempre com delicadeza. Mandou enviar um exemplar autografado e com dedicatória de seu livro. Me senti honrado, porque sempre fui fã dele. Adoro a comédia Absolutamente certo, de 1957, com Odete Lara, uma crítica feroz ao star system televisivo – do qual ele se tornou vítima. Seu rancor era quase lírico. Ele queria ser reconhecido como o maior. Quem viu O pagador de promessas sabe de sua dimensão. Um filme que agarra a alma brasileira e suas crendices pela raiz.


“O Brasil não é para principiantes”, costumava dizer Tom Jobim, que em vida também foi incompreendido, para depois virar santo na morte. E é verdade. Ter excesso de talento é um grande problema neste país. Sobretudo se você não faz parte de uma turma influente e intelectualmente “superior”. Isso aconteceu com Anselmo, ator romântico e cineasta exemplar, bonito, inteligente e ainda por cima popular. Era demais para os desmazelados garotos do Cinema Novo


Em junho/2009, Anselmo Duarte foi agraciado pelo governador do Estado de São Paulo José Serra com a Ordem do Ipiranga, a mais importante honraria civil dado pelo Estado.